quinta-feira, 31 de março de 2011

Licaón e o seu fanatismo



Licaón ou Licaonte era um rei da Arcádia muito querido por seu povo, porque ele havia abandonado a vida selvagem que tivera no passado e se tornado culto e muito religioso. Fundou a cidade de Licosura, uma das mais antigas da Grécia e nela criou um altar a Zeus. Mas sua apaixonada religiosidade o levou a realizar sacrifícios humanos, o que degenerou sua posição. Chegou ao ponto de sacrificar todos os estrangeiros que chegavam a sua casa, violando a sagrada lei da hospitalidade.

Desaprovando essas aberrações, Zeus, o deus dos deuses, fêz-se passar por um peregrino e hospedou-se em seu palácio. Licaón preparou-se
para sacrificá-lo, assim como havia feito com outros em nome de sua religiosidade. Porém alertado por alguns sinais divinos quis assegurar-se de que o hóspede não era um deus como afirmavam seus temerosos súditos. Para isso mandou cozinhar a carne de um escravo e servir a Zeus. Enfurecido, Zeus transformou Licaón em um lobo, incendiando o seu palácio que tinha sido testemunha de tanta crueldade.

Licaón era pai de inúmeros filhos, quase uns 50, tidos com muitas mulheres. Os filhos de Licaón eram tão cruéis quanto
o pai e se tornaram famosos por sua insolência e seus crimes. Tão logo ficou sabendo das barbaridades dos filhos de Licaón, Zeus se disfarçou de um velho mendigo e foi ao palácio dos Licaónidas para comprovar os rumores. Os jovens príncipes tiveram a ousadia de assassinar o próprio irmão Níctimo e servir suas entranhas ao hóspede, misturadas com entranhas de animais.

Zeus descobriu a crueldade e enfurecido converteu todos em lobos, exilando-os, poupando apenas Calisto, a bela ninfa filha de Licaón por quem Zeus se apaixonou, tendo com ela o filho Arkas. Porém a ciumenta esposa de Zeus transformou Calisto na Constelação da Ursa Maior e seu filho na Ursa menor. Zeus devolveu a vida a Níctimo que sucedeu seu pai no reino da Arcadia. No reinado de Nictimo aconteceu o dilúvio, pois Zeus já estava muito entristecido e desapontado com os seres humanos.

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O mito de Licaón está relacionado ao fanatismo, um estado psicológico de fervor irracional por
qualquer coisa ou tema, historicamente associado a motivações de natureza religiosa ou política. O excessivo apego e cultivo por determinados gostos e práticas são marcados pelo radicalismo e por absoluta intolerância com todos os que não compartilham de suas predileções. A apaixonada adesão a uma causa, a uma ideologia ou qualquer outra coisa pode avizinhar-se do delírio.

O fanático tem uma visão-de-mundo maniqueísta, cultivando a dicotomia do bem e do mal, onde o mal reside naquilo e naqueles que contrariam seu modo de pensar, levando-o a adotar condutas irracionais e agressivas que podem chegar a extremos perigosos, usando o recurso da violência para impor seu ponto de vista. A estreiteza mental inviabiliza outros modos de pensamento e a extrema credulidade dos fanáticos quanto ao próprio sistema leva à incredulidade a outros sistemas, criando preconceitos e um sistema subjetivo de valores, enquanto exacerba seu intenso individualismo.

Tradicionalmente visto nos movimentos religiosos e políticos, o fanatismo também tem se mostrado na atualidade nos cenários das torcidas de futebol. Assim como Licaón, qualquer adesão de forma apaixonada pode levar ao extremismo, degenerando os princípios necessários para se viver em harmonia com a sociedade.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Phyllis e Demofonte, a força do amor





Uma das mais belas e tristes histórias de amor da antiguidade envolve Demofonte e Phyllis. Demofonte era rei de Atenas, filho de Teseu. Ao voltar da Guerra de Tróia, Demofonte parou o seu navio no pequeno reino da Trácia onde conheceu Phyllis, a bela filha do rei. Eles se enamoraram no momento em que se viram. Vendo os jovens assim tão apaixonados, o rei consentiu no casamento instituindo o futuro genro como herdeiro de seu trono.

Antes do casamento, Demofonte explicou que precisava fazer uma breve visita a seu pai em Atenas, afinal não o via há muitos anos desde que partira para a guerra. Rogou pela compreensão de Phyllis, jurando que estaria de volta em quatro meses para viver para sempre ao lado da amada. Depois de ver a lua cheia brilhar por quatro vezes, Phyllis contava os dias e as horas, como só os apaixonados sabem contar.


Vivendo junto a praia observando o horizonte, várias vezes se iludiu julgando ter avistado ao longe as velas brancas do navio de Demofonte. Ele não aparecia e ela inventava mil desculpas para sua demora: talvez o pai o tivesse retido por mais tempo ao seu lado ou algo de ruim tivesse acontecido no caminho. Ás vezes ficava arrependida só de pensar nisso e corria a pedir aos deuses que o protegessem.


À medida em que o tempo passava, suas esperanças diminuíram, e, aos poucos, começou a ser dominada pelos fantasmas de sempre: talvez tivesse sido enganada por palavras doces, seduzida e abandonada. Julgou que seriam falsas as juras de amor, como eram falsas as lágrimas que ele tinha derramado ao partir. Talvez ele nem mesmo se lembrasse mais dela e a essa hora poderia ter encontrado outro amor.


Tomada pelo desespero, não suportou mais o sofrimento e resolveu se enforcar. Mas os deuses, apiedando-se dela, a transformaram numa triste amendoeira. Quando Demofonte finalmente regressou, três meses mais tarde, só lhe restou abraçar-se a árvore, reafirmando entre soluços, o amor que sentia por Phyllis. Nesse instante a amendoeira se cobriu de delicadas flores, que apenas aguardava o abraço apaixonado do amado, que lhe deu força e a seiva de que precisava para desabrochar.

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O mito de Demofonte e Phyllis fala da força do amor. Esse é o grande prodígio de um amor verdadeiro, ele nos torna mais vivos e mais floridos; ele nos devolve qualidades que julgávamos ter perdido e nos faz descobrir, com surpresa, que tínhamos outras qualidades, que sequer suspeitávamos.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Creso e a sabedoria para sempre




Creso, o poderoso e riquíssimo rei da Lídia, jamais esquecia de agradar os deuses e lhes dedicava templos esplendorosos, mas não se descuidava das artes e da ciência. Por isso, convidava para sua corte os grandes mestres da época e os recompensava generosamente pelos ensinamentos que ministravam. 

Foi assim que conheceu Sólon, um dos sete sábios daquela época. Na corte, Sólon foi convidado a visitar todas as dependência do palácio para que pudesse avaliar a riqueza de Creso. Depois daquela visita, Solon foi levado à presença de Creso que o aguardava em seu trono de ouro, coberto por um manto cravejado de pedras preciosas.

- Então, Sólon, conheces alguém mais feliz do que eu? - perguntou o rei. - Sim!, respondeu o filósofo surpeendendo o monarca. Existe um tal de Télus, um ateniense do povo, que era um homem de bem, assim como seus filhos, que todos nós respeitávamos. Era um cidadão exemplar que morreu com a espada nas mãos, defendendo Atenas contra os invasores.

Sentindo-se diminuído com a resposta, Creso insistiu:
- E eu, tu não me achas feliz?
Sólon sacudiu a cabeça: - Hoje, talvez; amanhã, quem sabe... A vida traz muitas surpresas; é preciso aguardar a última cena. Considerando-o um grosseirão, Creso o dispensou. 

Anos depois, levado pelo orgulho, Creso declarou guerra aos persas do grande conquistador Ciro, mas foi derrotado e feito prisioneiro. Os persas levantaram uma grande pira, amarraram Creso sobre ela e puseram fogo na madeira seca. Ali, esperando o destino fatal sob as chamas, Creso lembrou das palavras de Sólon. 

Com um suspiro, Creso olhou para o céu e exclamou queixosamente, o nome de Sólon por três vezes. Curioso, Ciro mandou seus intérpretes perguntarem a Creso que deus era aquele que ninguém conhecia. Quando soube que era um dos sete sábios, mais intrigado ficou. - Espera que ele venha salvá-lo? perguntou Ciro. - Não, disse Creso; é que finalmente entendi a lição que ele me deu e contou seu encontro com Sólon anos atrás.

Comovido, Ciro mandou que retirassem Creso da pira. Tinha enxergado a si próprio naquele homem derrotado, esfarrapado, enegrecido pela fumaça, que tinha sido um rei poderoso como ele. E tomou Creso por conselheiro, para que nunca viesse a esquecer que a felicidade é fugaz, mas a sabedoria é para sempre... 




domingo, 27 de março de 2011

Europa e Zeus, a arte da conquista


Europa era uma princesa filha de Agenor rei da Fenícia, que deu seu nome ao continente europeu. Segundo a lenda, Zeus apaixonou-se por Europa mas não conseguia falar com ela. Sabendo da admiração que Europa tinha pelos touros do pai, Zeus transformou-se em um touro branco e misturou-se com as manadas de seu pai.

Enquanto Europa recolhia
flores na praia, ela viu ao touro e o acariciou. Vendo que era muito manso, Europa subiu em suas costas. Aproveitando a oportunidade, Zeus a raptou levando-a nas costas até a ilha de Creta. Revelando sua verdadeira identidade, Zeus a tornou a primeira rainha de Creta e deu-lhe três presentes:
  • Talos, um autómata de bronze;
  • Laelaps, um cão que nunca soltava a sua presa;
  • e uma jabalina que nunca errava.
Depois de chegar a Creta, Europa teve três filhos: Minos, Radamantis e Sarpedón. Posteriormente causou-se com Asterión, rei de Creta, que adotou seus filhos. Algumas fontes a identificam sendo irmã de Io, a mítica princesa que foi transformada em uma ternera. Outras fontes, como a Ilíada, afirmam que era filha do filho de Agenor, Fénix, e costumam relatar que ela tinha dois irmãos: Cadmo e Cilix, que fundou a Cilicia, atual Armênia. Europa está relacionado ao Mito do Minotauro. Click aqui para ler mais.

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Quando há preparação para a conquista de um grande amor, utilizar-se dos melhores argumentos e mostrar suas melhores qualidades, é o que garante futuras relações afetivas responsáveis e maduras. É um processo que leva ao desenvolvimento do amor, e ninguém pode oferecer o que não tem, mas que pode cultivar as sementes em si mesmo. Isto se chama auto-estima.

Se você ficar esperando até que apareça alguém a quem deseje conquistar, certamente não estará preparada para isso e correrá o risco de perder a oportunidade. Não dá para viver um grande amor sem antes atrair, envolver e conquistar alguém que nos interesse. Embora o amor seja um sentimento pouco provado cientificamente, é possível relacionar alguns detalhes que contam, e muito, para que uma pessoa se torne atraente, envolvente e seja capaz de conquistar a outra: Sorria, olhe, ouça com atenção, elogie e demonstre seu interesse.

Nada garante o amor, o amor não dá garantias. O que existem são atitudes que favorecem encontros, que facilitam aproximações e que contribuem bastante para que uma relação de amor se desenvolva e seja satisfatória. Lançando mão desse conjunto de atitudes, você pode se tornar uma pessoa realmente interessante. Afinal, não é fácil atrair, envolver e conquistar alguém se você não acreditar que tem capacidade ou atributos para tal proeza.

Porém sempre lembre-se do óbvio matemático; todas as chances estão em apenas 50%. O segredo é estar atenta para que suas investidas se tornem cada vez mais adequadas e, assim, irresistíveis. A pessoa verdadeira, só diz o que sente. Não iluda, não faça promessas que não pretende cumprir apenas para conseguir o que quer naquele momento. Respeite e preserve o outro, pois cada um de nós é apenas a metade de um relacionamento.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Troilo e o auto-engano





Troilo ou Troilus era um jovem principe troiano que tinha seu destino unido ao destino de sua cidade Troia, devido a uma profecia. Filho mais novo do Rei Priamo e da Rainha Hécuba, dizia a profecia que Troia nunca seria destruida caso Troilo completasse 21 anos. Devido à sua excepcional beleza, diziam que era filho de Apolo, porém ele era criado como verdadeiro filho do rei.

Troilo costumava ironizar a tolice dos casos de amor de outros jovens rapazes. Certo dia, ao ver Créssida ou Criseis, uma jovem filha do adivinho Calcas que havia traido Troia e se unido aos gregos, Troilo se apaixonou por ela. Envergonhado por ter se tornado exatamente o tipo de pessoa que ele costumava ridicularizar, Troilo tentou esconder seu amor.

À medida que sofria por Créssida acabou despertando a curiosidade de seu amigo Pândaro, que sabendo o motivo de sua infelicidade o convenceu a revelar seu amor.
Pândaro se ofereceu para ser um intermediário, apesar de que sendo parente de Créssida deveria resguardar sua honra. Pândaro revelou à Créssida o amor de Troilo e a convenceu a consumarem seus desejos.

Porém essa felicidade foi interrompida, quando Calcas convenceu Agamenon a organizar o retorno de Créssida, como parte de uma troca de reféns. Os dois amantes entraram em desespero e pensaram em fugir, porém acabaram concordando com a troca. Apesar da intenção inicial de Créssida em permanecer fiel a Troilo, o guerreiro grego Diomedes conquistou-a. Quando Troilo soube, jurou vingar-se de Diomedes e dos gregos.


Diomedes era um guerreiro grego aliado de Aquiles, que era contrário à troca de reféns. No entanto, Aquiles tramou uma emboscada e quando Troilo e sua irmã Polixena sairam para buscar água em um poço nos arredores de Troia, Aquiles pretendia atacá-los, porém ficou encantado com a extrema beleza de Troilo. O jovem principe fugiu e refugiou-se no templo de Apolo. Apesar da admiração pela beleza e juventude de Troilo, Aquiles o decapitou e mutilou seu corpo no altar do templo. Ofendido pelo sacrilégio, Apolo vingou-se de Aquiles ajudando a Páris, que atingiu com uma flecha o calcanhar de Aquiles, o único ponto vulnerável do famoso herói.


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A frustrada história de amor entre Troilo e Créssida evidencia as tendências humanas às cegueiras, não quer ver e ao auto-engano. A maldição comum da humanidade, loucura e ignorância, parece resumir a visão do autor, segundo a qual os seres humanos vergam-se às suas ilusões a respeito da vida, do amor e da glória. A atração do casal foi construída pelas imagens transmitidas por um intermediário, pelo que ouviu outros dizerem e não por uma experiência direta.

Troilo é o amante idealista, enfraquecido por seus sentimentos, o guerreiro iludido com os ideais da guerra. Ele se engana tanto em relação aos sentimentos de sua amada e quanto aos motivos para a Guerra de Tróia.
Ao representar os herois de modo tão pouco honrado e glorioso, parece querer expressar a futilidade e o desperdício de vidas e energias que uma guerra representa.

Ambos sucumbem por motivos diferentes da honra. Suas mortes são motivadas pelo orgulho ferido, pelo desejo de vingança, pela cobiça e pela traição, o que acentua o tom depreciativo em relação ao amor romântico e às glórias militares.
O final ambíguo parece sugerir que a qualquer tempo, através de nossas ações podemos construir um mundo melhor, mais lúcido e sermos pessoas mais corretas e sensatas do que gregos e troianos.

Troilo e Cressida é um conto educativo que tem o poder de nos fazer refletir sobre as imperfeições humanas e as incorreções presentes no mundo, mas também nos faz perceber que a passagem do tempo aliada à reflexão pode nos libertar de nossas ilusões e desvarios.




segunda-feira, 21 de março de 2011

Narciso, a paixão por si mesmo



Narciso, um jovem de extrema beleza, era filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liriope. No entanto, apesar de atrair e despertar cobiça nas ninfas e donzelas, Narciso preferia viver só, pois não havia encontrado ninguém que julgasse merecer seu amor. E foi o seu desprezo pelos outros que o derrotou.

Quando Narciso nasceu, sua mãe consultou o adivinho Tirésias
que lhe predisse que Narciso viveria muitos anos desde que nunca conhecesse a si mesmo. Narciso cresceu tornando-se cada vez mais belo e todas as moças e ninfas queriam seu amor, mas ele desprezava a todas. Certo dia, enquanto Narciso descansava sob as sombras do bosque, a ninfa Eco se apaixonou por ele. Porém tendo-a rejeitado, as ninfas jogaram-lhe uma maldição: - Que Narciso ame com a mesma intensidade, sem poder possuir a pessoa amada. Nêmesis, a divindade punidora, escutou e atendeu ao pedido.

Naquela região havia uma fonte límpida de águas cristalinas da qual ninguém havia se aproximado. Ao se inclinar para
beber água da fonte, Narciso viu sua própria imagem refletida e encantou-se com sua visão. Fascinado, Narciso ficou a contemplar o lindo rosto, com aqueles belos olhos e a beleza dos lábios, apaixonou-se pela imagem sem saber que era a sua própria imagem refletida no espelho das águas.

Por várias vezes Narciso tentou alcançar aquela imagem dentro da água mas inutilmente; não conseguia reter com um abraço aquele ser encantador. Esgotado, Narciso deitou na relva e aos poucos seu corpo foi desaparecendo. No seu lugar, surgiu uma flor amarela com pétalas brancas no centro que passou a se chamar, Narciso.

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Na cultura grega e em muitas outras, tudo o que excedia e estivesse acima dos limites e da medida (métron) acabava se
transformando em algo assustador porque poderia levar à hybris, que é descomendimento e desequilibrio. O excesso de beleza não era bem aceito pois somente aos deuses era permitido o exagero, e a excessiva beleza de Narciso desafiava a supremacia dos deuses.

O mito de narciso parece uma triste história infantil para ensinar às crianças a não
serem egoistas, que pensem nos outros, que não sejam presunçosas, porém encerra uma verdade profunda e atual. Os mitos não são tolos, e por mais que tentássemos dizer que sabemos a moral da história, o mito de Narciso está presente em todos nós.

Narciso foi transformado numa flor e a ela são creditadas propriedades entorpecentes devido a substâncias químicas que exalam. Os Narcisos plantados nos tumulos simbolizavam a morte apenas como um sono, que floresceria na primavera. O narcisismo, que tem o seu nome derivado de Narciso, ambos derivam da palavra grega narke, entorpecido, de onde também vem a palavra narcótico. Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, pois Narciso era emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonaram pela sua beleza.

O mito de Narciso leva ao tema da transitoriedade da beleza e dos laços que unem o narcisismo à inveja e à morte. O
dilema do narcisismo é resumido naquele que está condenado a permanecer prisioneiro do mundo das sombras, do seu amor por si mesmo ou libertar-se através do autoconhecimento e da capacidade de conhecer os outros, mas o preço é a morte simbólica do ego, para que possa nascer novamente para um novo Eu superior, profundo e sagrado, que em si oculta.

Narciso morre porque olha só para si mesmo, esse é o perigo de quem dedica toda vida a satisfazer necessidades que não atendem ao verdadeiro anseio humano de se realizar. Eco morre porque só olha narciso, esse é o perigo de projetar no outro a nossa razão de viver. Narciso simboliza a capacidade de olharmos para nós mesmos; Eco simboliza a capacidade de olhar o outro. É o olhar em si que encontra o outro; é o olhar no outro que encontra a si mesmo.

Embora o
narcisista pense apenas em si, nunca poderá conhecer a si mesmo se não tiver uma posição exterior para se ver como realmente é. Narciso é incapaz de ver o efeito que provoca nos outros; sabe que atrai aduladores e admiradores e Eco transforma-se no espelho do negligente Narciso. Ele se julga intocável; ela alimenta o desejo de estar em seus braços.

Eco é a repetição das ideias conhecidas sempre hostil ao novo. Ao se apaixonar por Narciso, Eco repetiu... repetiu... e foi perdendo força, impedida de viver e amar. Eco se refugiou nas grutas, assim como a mente que teima em repetir perdendo quotas do que é novo em suas vidas. O presente é a única instância onde a vida se processa; o futuro ainda não existe e o passado é repetição, um eco. O presente é a medida do novo e trazer Eco para o presente é fazê-lo mais velho, embora ainda pareça novo.

Com seu egoismo implacável, Narciso pensa só em sí próprio e Eco só pensa em Narciso, então sua autoestima permanece frágil até a morte. Ele não se identifica com os outros e assim transforma as vozes na sua propria voz; ela não tem voz própria, está condenada à repetição da imitação. Enquanto ela agarra-se ao objeto amado, ele mantem-se à distancia. Tirésias sabia que para sobrevivermos temos de superar o narcisismo, pois temos de aceitar que somos transitórios e mortais, e só assim seremos capazes de nos transformar, nossa auto estima estará segura e teremos a beleza interior.

Quando Narciso vê o próprio reflexo, nos remete a "reflectere", de "re" novamente e "flectere" curvar-se, ou seja, um retorno que se faz curvando para o passado. Reflexão não é apenas um ato de pensar, mas é uma atitude de deter-se para procurar lembrar-se de algo que já foi visto antes e confrontar com o presente. Reflexos e sombras nos espelham de alguma maneira. Alguns povos ainda hoje não admitem que sua imagem seja refletida em água, espelho e fotografia; diz-se que a alma poderia ficar retida no reflexo permanecendo disponível às forças do mal.

A sombra representa o que não conhecemos de nós mesmos mas que podemos ainda conhecer, tal como as nossas
potencialidades que ainda não desenvolvemos. Também faz parte da nossa sombra o que mais detestamos em nós mesmos, e por isso tentamos esquecer ou reprimir de alguma forma. Para negar o que não gostamos em nós mesmos, projetamos nos outros. Quando refletimos no Narciso que vive em nós, nos confrontamos com algo sombrio, o medo da sombra, do diferente, do desconhecido, do que nos incomoda e que não queremos ver no outro.

Nos sentimos mais confortáveis quando somos admirados e reconhecidos, e precisamos disso para saber o nosso valor,
de que somos importantes para alguém. Assim continuamos procurando e nos apaixonando por nossos reflexos, por nossos semelhantes e iguais, enquanto tentamos afastar todos aqueles que que não tem a nossa cor, os nossos costumes, nossa raça, nosso nivel cultural ou poder economico, e convicções politicas e religiosas. E enquanto vamos em busca dos nossos reflexos, ampliamos mais nossa sombra, entorpecemos nossos sentidos.

Para evoluir temos de refletir, aprendendo a lidar com as diferenças e conflitos. Como num espelho, ao interargimos com o outro nos colocamos no lugar dele, sem perder nossa referencia. E o que mais nos fascina é a nossa imagem irreal, aquela que fazemos de nós mesmos. A pessoa fascinada parece estar em transe; o narcisista quer congelar a juventude e exorcizar a velhice. Idolatra o prazer e vive no espirito do encanto e da sedução.

O mito de Narciso pode servir de
metáfora para muitos de nós, quando não conseguimos nos olhar com imparcialidade, e o nosso trabalho interior se torna um meio de projetar a vaidade humana na cantiga do eu sozinho: eu faço, eu sou, eu quero, eu posso. Narciso morreu embriagado pela propria beleza e encantamento, e os deuses o transformaram numa flor. A lição do mito é que o conhecimento só vinga se houver autoconhecimento, de potencialidades ou limitações, compartilhando o que sabe, eliminando vaidades que impede de aproveitar talentos e somá-los ao conhecimento dos demais. E assim escrever uma história de vida que reflita valores éticos, morais espirituais.

O conhecimento mal direcionado só
alimenta o individualismo e a necessidade da ribalta. Quando nos deixamos levar pela excessiva vaidade e orgulho, tornamo-nos refens de nossa auto imagem. Magnetizado por ela, passamos a usar nossa luz de forma mesquinha e presos nessa miragem, perdemos a capacidade de irradiar nossa luz, afastando-nos da essencia, entusiasmamos pelo palco, pelo aplauso e pelo falso elogio. Somente a dura lição de cronos, o tempo, mostra-nos a verdade, muitas vezes, tardiamente.

Se Narciso se encontra com outro Narciso e um deles finge que ao outro admira, para sentir-se admirado, o outro pela mesma razão finge também e ambos acreditam na mentira. Para Narciso o olhar do outro, a voz do outro, o corpo é sempre o espelho em que ele a própria imagem mira. E se o outro é como ele outro Narciso, é espelho contra espelho: o olhar que mira reflete o que o admira num jogo multiplicado em que a mentira de Narciso a Narciso inventa o paraíso.

E se amam mentindo no fingimento que é necessidade e assim mais verdadeiro que a verdade. Mas exige o amor fingido,
ser sincero o amor que como ele é fingimento. E fingem mais os dois com o mesmo esmero com mais e mais cuidado - e a mentira se torna desespero. Assim amam-se agora se odiando. O espelho embaçado, já que Narciso em Narciso não se mira: se torturam, se ferem, não se largam, que o inferno de Narciso, é ver que o admiravam de mentira...


Arethusa, a fonte da individualidade





Arethusa significa "a que rega". Ela era uma ninfa, filha de Nereu que a tornou uma Nereida, atendente casta de Artemis. Chegando a um rio de águas cristalinas, Arethusa despiu-se e mergulhou nas águas frescas e serenas. Durante algum tempo nadou tranquilamente de um lado a outro. 

Logo depois, sentiu que algo se agitava sob as águas; depois, teve a impressão de que alguma coisa se agitava logo abaixo dela, e, assustada, saltou para a margem. Ouviu então uma voz que lhe dizia: "Por que tanta pressa bela jovem?" Sem olhar para trás, afastou-se do rio e embrenhou na floresta correndo a uma velocidade que o medo multiplicava. 

Apaixonado por ela, Alfeu, deus do rio, a perseguiu. Correndo em fuga Arethusa pediu proteção à deusa Artemis que a escondeu em uma nuvem. Mas Alfeu a descobriu quando ele persistente a procurava. Suando de medo, logo ela se transformou em um córrego. Alfeu continuou a persegui-la ora por cima da terra, ora por baixo da terra, desaparecendo numa ponta e aparecendo em outra buscando unir-se a ela. 

Foi uma longa corrida, mas ele nunca duvidava que algum dia pudesse alcançá-la pois ele era capaz de correr por muito mais tempo do que ela. Quando já estava sem forças de tanto correr, Arethusa invocou Ártemis e a deusa abriu uma fenda na terra que se tornou um túnel sob o mar, que unia a Grécia e a Silícia. Arethusa mergulhou e foi emergir na ilha de Ortygia na Sicilia transformando-se numa fonte, que hoje é chamada de Fonte de Arethusa.

Inconsolado, Alfeu fluiu até o mar para
conviver com suas águas, através do rio subterrãneo Alpheius no Peloponeso. Com suas águas, Alfeu abriu caminho nas profundezas do abismo indo em busca de Arethusa com belas flores, presentes nupciais. Alfeu, o deus do rio, fundiu suas águas com as águas da Fonte Arethusa e ainda hoje flores gregas brotam de seu fundo. Basta jogar uma taça de madeira no rio Alfeu na Grécia, para que a mesma apareça na Fonte de Arethusa na Sicília.

Estranhos são os caminhos do amor, esse menino travesso e perturbador que, com seus encantamentos, ensinou
um rio a mergulhar, num amor imortal. É por isso que as águas doces de Alfeu passam por cima do mar, sem misturar-se, até chegar à Fonte Arethusa.



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Quando somos crianças, nos sentimos felizes e plenos de satisfação a cada descoberta. Experimentamos os sabores, nos atraimos pelas cores, queremos entender como funcionam e para que servem os objetos. E assim, queremos circular pelo ambiente especulando cada canto e vamos nos distanciando da necessidade do colo dos pais e do aconchego permanente; estamos construindo a nossa individualidade. Embora nos sintamos mais seguros e protegidos com a presença de nossa mãe, queremos também descobrir o mundo.

O romance complexo, possessivo, cheio de paixão e doloroso pode ser comparado à insegurança infantil,
pois o amor verdadeiro, sem cobranças e sem carências, é que garante as relações adultas e saudáveis. O amor tem sofrido atualizações onde uma aliança respeitosa propicia que cada um tenha seus próprios interesses e divertimentos além da vida em comum em que ambos compartilham dos mesmos interesses.

O amor também chegou à era da
tecnologia e a humanidade está se tornando menos disposta a fazer concessões e de viver grudados em seus romances. Sobrevive mais o relacionamento que é baseado nas afinidades intelectuais, companheirismo e amizade profunda, porque as afinidades de caráter, gostos e temperamentos, tem se tornado essenciais para a estabilidade dos elos sentimentais. As mulheres costumam se prender mais aos ideais romanticos, porém já estão num processo de individualização compreendendo que a fusão romantica que tanto sonham na verdade exige maiores renúncias.

Na atualidade, os relacionamentos precisam muito mais de cooperação e ambos, por meio da negociação, decidem o que será feito em conjunto. A sensação de aconchego depende mais dos interesses intelectuais, quando se entende que quanto maior a paixão, maior é a perda da individualidade. No encantamento amoroso intenso, de paixão, geralmente há um que ama intensamente e outro é amado de forma passiva, e se não existe uma correspondencia equilibrada, será uma relação fantasiosa e incompleta.

A ideia da cara metade, de que somos apenas uma metade e precisamos de encontrar a outra metade, é que determina a
busca da fusão, mas na realidade nunca encontrada e que oprime a individualidade. No passado, homens e mulheres se uniam para resolver questões práticas de sobrevivencia. Hoje os relacionamentos precisam se adequar à modernidade, enfrentando problemas juntos, compartilhando soluções e divertimentos, o que é mais gratificante do que o amor romantico tradicional. Quando os casais descobrem isso, eles passam a desenvolver interesses próprios, com suas outras paixões seja pelo esporte, pelo futebol ou interesses intelectuais.

Construir sua própria independência financeira e ser capaz de cuidar de
si mesmo, dispensando a necessidade de estar sempre no colo do outro, equilibrando egoismo e generosidade, é o caminho para as perfeitas relações, uma lição que Arethusa pode nos ensinar.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Dédalo e Ícaro, os limites para sonhar




Em Atenas, Dédalo era um artesão e engenheiro famoso. Todos conheciam a sua arte e ele tinha fama em toda Grécia. Os mais poderosos reis queriam adquirir as suas esculturas ou viver nos majestosos palácios e edifícios que ele construia. Com tantas encomendas, Dédalo já não conseguia atender a todos os pedidos e para aliviar a grande sobrecarga, o artista decidiu ter um aprendiz em sua oficina, seu sobrinho Talo.

Dédalo ensinou ao jovem todos os segredos das artes
da cerâmica, da arquitetura e da escultura. Aos poucos, Talo mostrou-se um excelente aprendiz e um genial artista, e com sua criatividade inventou o torno de oleiro. Dédalo sentiu uma profunda inveja por não ter sido ele o criador do invento. A cada dia, Talo inventava algo. Certa vez, ao ver os dentes pontiagudos de uma serpente, ele teve a inspiração para inventar o serrote. Passado algum tempo, Talo inventou o compasso e outros inventos para a produção das armas, tijolos e vestimentas dos atenienses.

Quanto mais Talo mostrava a sua criatividade, mais Dédalo o invejava, e Talo começou a adquirir muita
fama em Atenas conquistando os antigos admiradores e clientes de Dédalo. Aos poucos Dédalo foi perdendo a genialidade criativa e sua inveja tirava sua inspiração. Os trabalhos de Talo passaram a ser preferidos e Dédalo por se sentir ofendido decidiu eliminar o sobrinho. 

Dissimulando suas intenções, Dédalo convidou Talo para um passeio ao templo de Atena que ficava no alto e um penhasco. Caminhando inocentemente com o tio, quando passavam pelas muralhas do tempo em um gesto premeditado Dédalo empurrou Talo ao precipício. Ao encontrar a morte, o rosto de Talo apresentava um sorriso nos lábios.

Depois de matar o sobrinho, Dédalo recolheu o corpo de Talo, enfiou em um saco e tentou apagar os vestígios de seu
crime. Porém, quando retornava para sua oficina, Dédalo foi surpreendido carregando um saco sujo de sangue. Nervoso, o arquiteto disse ser de uma serpente que matara mas o nervosismo do arquiteto fez com que as pessoas desconfiassem daquela versão. Dédalo continuou o seu caminho, sem perceber que os curiosos sorrateiramente seguiam os seus passos. Em um terreno vazio, Dédalo depositou o cadáver do sobrinho. Do alto do Olimpo, Atena a deusa da sabedoria, o assistia e transformou a alma de Talo numa perdiz.

Denunciado, Dédalo foi conduzido ao cárcere enquanto a perdiz sobrevoava
tribunal assistindo a justiça feita. Alguns dias após a condenação Dédalo conseguiu fugir para Creta onde já tinha chegado a sua fama de artesão, escultor, inventor e engenheiro. Quando Minos, rei de Creta, soube da presença do artista, recebeu-o com honras de Estado e o colocou sob sua proteção mas exigiu que ele trabalhasse somente para ele. 

Dédalo passou a criar muitas obras e estátuas para Minos, mas perdeu sua liberdade criadora. Suas criações ficaram restritas aos desejos do monarca e sua arte se tornou prisioneira dos caprichos do Rei Minos. Sempre à deriva dos caprichos reais, a bela rainha Pasífae, a esposa do rei, tendo se apaixonado por um touro, pediu a Dédalo que criasse uma armadura no formato de uma novilha que lhe permitisse atrair o touro. 

Dédalo esculpiu uma novilha em madeira e desse amor incomum da rainha e o touro nasceu o Minotauro, uma criatura com corpo de homem e cabeça de touro. Para esconder a vergonha da traição da mulher, Minos ordenou que Dédalo construísse uma prisão para o monstro, um lugar de onde ele jamais pudesse sair. Dédalo construiu um labirinto com becos e caminhos sinuosos, como um enigma.

O Labirinto tornou-se a maior obra
arquitetônica de todo o Mediterrâneo gerando a admiração dos povos, inquietando a curiosidade de outros reinos. Aprisionado, o Minotauro se revelou uma violenta fera e exigia ser alimentado de carne humana. Minos que havia conquistado o reino de Atenas, exigia do rei Egeu sete rapazes e sete moças para serem sacrificados. Teseu, o filho do rei de Atenas, revoltado com a maléfica exigência, misturou-se com os jovens que seriam enviados para Creta.

Em Creta, Teseu seduziu a bela princesa Ariadne, filha de Minos. Com sua ajuda, penetrou no Labirinto levando um
novelo de lã que foi desenrolado desde a porta de entrada. Teseu venceu o Minotauro e conseguiu sair do labirinto seguindo as linhas do novelo. A bela Ariadne esperava-o na saída e apaixonada fugiu com Teseu, levando seu irmão como refém. 

Perseguidos pelo rei Minos, esquartejaram o filho de Minos, e enquanto Minos recolhia os pedaços do filho no mar, Teseu e Ariadne fugiram. O rei Minos culpou Dédalo por toda tragédia e como castigo, encerrou Dédalo e seu filho Ícaro dentro do Labirinto, fazendo-os prisioneiros perpétuos.

Dédalo se tornou prisioneiro de sua própria criação e
passou a viver com seu sonho de liberdade, até que construiu asas que lhe permitiria fugir voando. Juntando penas de aves, Dédalo construiu seu sonho amarrando as penas e colocando uma camada de cera sobre elas. 

Terminado seu projeto, Dédalo recomendou a seu filho os cuidados para o vôo e, movidos de coragem, os dois saltaram para o infinito. Dominando o vôo, Dédalo preveniu ao filho que mantivesse uma determinada altura; não tão baixa para não cair no mar e nem tão alta para que não se aproximasse do sol que poderia derreter a cera.

Dédalo e Icaro alcançam os
céus da Grécia, mas Icaro se deixou deslumbrar pela sensação de liberdade e pela beleza do céu. Voando alto, os raios quentes do sol derreteram a cera das asas e em meio ao seu delirio sonhador, Icaro se precipitou no mar. Dédalo desceu para apanhar o cadáver do filho e quando caminhava entre os arbustos para sepultá-lo, uma perdiz pairou sobre sua cabeça. Era o espírito de Talo, acentuando a tragédia numa anunciada vingança.

Partindo em um barco pelo mar Dédalo aportou na Sicília. Mesmo sendo recebido com honras pelo rei daquele local, a
alma de Dédalo vestia um luto perene e nada estimulava sua alma criadora. Já não sentia nenhuma inveja como no passado e viu perdida sua genialidade. 

Apesar disso, criava o que lhe instruiam mas ele já não se importava com os aplausos. Tornou-se um protegido no reino mas um dia Minos aportou na Trinácria à procura de Dédalo. A fim de proteger Dédalo, o rei Cócalo fingiu receber com honras o rei Minos, convidando-o para um banho quente e um banquete.

Para repousar da fatigante viagem, Minos atendeu ao convite. Entrando na banheira, sentiu a água morna e fechou os
olhos para repousar. Mas Cócaro havia premeditado matar Minos, e de repente a água começou a esquentar e ferver e, apesar dos gritos de Minos, ninguém veio a socorrê-lo. 

O soberano de Creta morreu sufocado pelos vapores e pelo calor. Dédalo estava livre do seu maior perseguidor, porém já não tinha mais sentido a sua liberdade. Dédalo seguiu solitário ensinando sua arte a muitos discípulos. E já muito velho, quando viu a morte chegar, Dédalo realizou seu maior sonho, vendo sua alma sem asas voar...


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O mito de Dédalo e seu filho Ícaro representam as limitações físicas do ser humano, apesar da sua criatividade.
Enquanto jovens, temos grandes sonhos e grandes projetos em mente, e buscamos realizar algo sagrado que alimenta a liberdade de nossa alma. Tentamos superar todos os obstáculos, mas quando perdemos o bom senso e somos imprudentes em nossas ações, podemos alterar todo o curso de nossas vidas.

Assim como Dédalo, podemos ter talentos
excepcionais mas nossa vaidade pode traçar caminhos diferentes. O ego inflamado de Dédalo aprisionou sua arte e seu espírito criativo, tornando-o escravo das paixões alheias, construindo sonhos que não eram os seus. Assim como Dédalo, também nós podemos aplicar nossos talentos numa carreira de sucesso conseguindo reconhecimento e aplausos, mas se estivermos distantes de nossos sonhos e projetos de vida, tendo limitada a nossa criatividade, estaremos construindo um labirinto para nossa própria alma.

Quando
permanecemos em empregos, relacionamentos e qualquer outra situação que não atende os apelos de nossa alma, nos tornamos prisioneiros. E como Dédalo, podemos nos libertar de situações opressoras e seguir nossos sonhos, mas é necessário reconhecer os limites para sonhar. Dédalo se libertou pela arte com sua criatividade, ciente de que a arte é compulsiva e latente à essência do seu criador. Sua mais ousada criação lhe permitiu a liberdade e o sonho de voar. Se Dédalo é a mente criativa, Ícaro é a liberdade sonhadora; o homem asfixiado nas limitações da liberdade saciada.

Ao se ver livre voando como um pássaro, percorrendo um espaço ilimitado, Ícaro alcançou patamares mais altos, rumo
aos seus ideais, rompendo os limites, ignorando os conselhos de seu pai, o criador. Icaro voou alto sem pensar nos perigos da queda, a sensação da liberdade apagou a dor fatal. O castigo de Icaro é o mesmo para todos os mortais, que não obedecem os limites dos sonhos, usando sua consciência e livre arbitrio. Livre, Dédalo pagou um alto preço da procura de sua liberdade de sonhar e criar. Os sonhos alimentam a alma; é a ausência de limites e realidade, que alimentam os fracassos. 


quarta-feira, 9 de março de 2011

Calcas, o adivinho que morreu de tanto rir




Calcas foi um vidente poderoso que havia herdado de seu avô Apolo o dom de decifrar os mistérios do passado, presente e do futuro. Ele era o adivinho da vida militar dos gregos e tinha o dom de interpretar o vôo dos pássaros, por isso foi eleito como grande sacerdote e adivinho oficial da Guerra de Tróia. Nada importante era resolvido ou decidido antes de consultá-lo.

Foi de Calcas a previsão de que Troia seria destruída caso Troilus, o filho mais novo do rei Priamo, morresse antes que completasse 21 anos. Também previu que o cerco a Tróia teria a duração de dez anos. Calcas profetizou que, para conseguir um vento favorável que levasse as naus gregas até Tróia, Agamenon teria de sacrificar sua filha Ifigênia para pacificar a deusa Artêmis que ele havia ofendido.

Também revelou aos gregos que a escrava Criseis devia ser devolvida a seu pai Crises, para que Apolo retirasse a praga que lhes fora mandada como punição. Isto desencadeou um atrito entre Aquiles e Agamenon, fazendo Aquiles abandonar a guerra. No entanto, quando Aquiles retomou a luta, aniquilou Troilus e Troia foi destruída, cumprindo-se a profecia de Calcas.

Há muitas versões para sua morte mas, segundo a mais popular, Calcas havia sido avisado por um oráculo que morreria quando encontrasse um adivinho que lhe superasse. Terminada a guerra e em viagem de regresso à sua pátria, Calcas chegou à Cólofon onde vivia o adivinho Mopso, filho de Apolo e neto materno de Tirésias.

Num concurso de adivinhações Mopso saiu-se vencedor, mas novamente Calcas desafiou o adivinho pedindo que ele revelasse o dia de sua morte. Mopso previu que Calcas morreria naquele dia, porém chegou a tarde e Calcas não tinha morrido. Parecendo que a profecia não se cumpriria, Calcas zombou de Mopso e teve um ataque de riso; riu tanto, que morreu de tanto rir...


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Embora a maioria de nós prefira ser apenas aplaudido, grande valor tem um comentário a respeito de um aspecto negativo que pode ser corrigido, desde que o comentário não tenha o objetivo de nos atingir pessoalmente, mas que o alvo da crítica se direcione a aspectos que podem ser melhorados.

Quem ouve um comentário deve tentar aceitá-lo sem tornar-se vítima ou assumir um papel de infalível ou ofendido. Todo comentário deve ser avaliado, sem que tenhamos de nos colocar em posição defensiva ou explicativa. Absorver traz algum proveito da experiência.

Quem consegue lidar de forma positiva com as opiniões alheias, constrói uma espécie de filtro emocional, que seleciona os comentários positivos capazes de produzir crescimento, daqueles comentários destrutivos que não geram absolutamente nada.


Só não pode ouvir críticas quem é muito obtuso para compreender sua importância ou quem é perfeito. E não há evolução para quem se considera perfeito. A sabedoria está em saber calar-se diante da crítica e saber dar-se um tempo para absorvê-la.

Existem pessoas que se organizam sobre o elogio fácil e da bajulação, no entanto perdem a oportunidade de melhorar aspectos que os tornariam mais brilhantes. A crítica sincera é o que nos leva ao esforço para melhorarmos, isto se o comentário não for maldoso.

Somente um amigo verdadeiro tem a ousadia de mostrar-se contrário ou em desacordo, quando percebe que algo poderia ser melhor. Aplaudir é muito mais fácil e cômodo. Saber ouvir e encarar críticas é prova de maturidade, inteligência, civilidade, elegância e pode ser utilizado em prol do próprio desenvolvimento, tal como uma arte.




segunda-feira, 7 de março de 2011

Artemis, a deusa casta e justiceira





Artemis era a mais popular das deusas do panteão grego, filha de Zeus e Leto, a irmã gêmea de Apolo. Conta a lenda que quando sua mãe estava grávida, sendo perseguida por Hera, a esposa de Zeus que odiava as amantes do marido, impedia que os filhos de Leto nascessem em qualquer lugar. Grávida de gêmeos, Leto chegou à Ilha de Delos onde nasceu primeiro Artemis que ajudou no parto de seu irmão, sendo esta a razão porque Artemis era invocada para auxiliar no trabalho de parto das mulheres. Os romanos a associavam com a deusa Diana.

Com uma mão ela protegia a vida, na outra ela trazia a ruína. Junto com Ilithyia ela ajudava as mulheres grávidas no parto sem dor. Se uma mulher morresse durante o parto, acreditava-se que ela havia sido atingida por uma flecha de Artemis. Ainda assim, as roupas da mulher falecida eram oferecidas à deusa. Noivas e noivos, principalmente as jovens virgens, pediam sua proteção mas eram obrigados a oferecer à deusa seus brinquedos. As moças deviam deixar as tranças de seus cabelos no altar de Artemis, e assim estariam liberadas dos domínios da deusa.

Artemis também era considerada como deusa da vegetação e da fertilidade. Era a deusa da natureza intocada em
conexão ao culto das árvores e qualquer um que sacrificasse uma árvore era punido pela deusa. Nos cultos oferecidos à deusa os gregos dançavam com os ramos sagrados. Apesar de ser venerada na Grécia, seu culto era especial na Arcádia, pois ali ela vivia afastada nos bosques selvagens e intocados, e era a mais virginal das deusas.
O Rei de Calidon esquecendo-se de oferecer a Artemis os primeiros frutos da colheita anual, foi castigado pela deusa que enviou um enorme javali ao reino, que atacava pessoas e animais, impedindo que a terra fosse novamente semeada. Embora o rei tenha chamado os mais nobres guerreiros para caçar o javali, somente Atalanta conseguiu vencê-lo. Também castigou Erisicton quando ele derrubou as árvores frutíferas consagradas a Demeter.
Acompanhada das ninfas, suas seguidoras, ela vagava por bosques e prados com seu arco e flechas, por isso era representada como protetora dos caçadores e senhora dos animais. Era uma deusa impiedosa quando ofendida e punia severamente os ofensores. Quando Agamemnon matou um cervo consagrado à deusa, ela segurou os ventos impedindo que ele partisse com seu barco, e exigiu que ele sacrificasse sua filha Ifigênia para liberar os ventos. Porém, apiedou-se de Ifigênia, que se tornou sua seguidora.

Artemis vivia na rica terra de Delfos comandando a dança das Musas e das Graças sob a luz prateada da lua. Como uma deusa virginal, suas seguidoras também deviam ser virgens. Ela as protegia e punia todos os homens que ousassem tocá-las ou vê-las banhando-se nas fontes. Artemis não odiava os homens, mas exigia que eles respeitassem as mulheres. Sua ruina foi querer provar sua habilidade de caçadora, e a pontaria certeira de suas flechas.


Órion caçava em companhia de Ártemis mas seu irmão Apolo pretendia protegê-la. Um dia Apolo mandou o
Escorpião Celestial matar Órion e quando ele percebeu que não conseguiria vencer o monstro, se jogou no mar e saiu nadando acompanhado por seu cão Sírius. Imediatamente Apolo chamou a irmã e a desafiou a acertar um pequeno e distante ponto no mar. Para provar que era era eximia atiradora, Artemis acertou o ponto no mar. Quando as ondas chegaram à praia, trouxeram o corpo de Órion. Inconsolável, Ártemis o transformou na constelação de Órion e Sirius se tornou uma estrela que faz parte da constelação Cão Maior.

Ártemis era celebrada quando o Sol passava pelo signo de Sagitário, em 22 de novembro. Está representada como a
virgem atleta personificando a força e o instinto de caçadora, protetora das florestas e dos animais. É uma deusa lunar representando o poder feminino em todos os aspectos, a parteira, aquela que é íntegra em si mesma. Essa deusa é a mais completa das doze divindades olímpicas, padroeira das crianças e dos nascimentos, a deusa guerreira das Amazonas. Seu maior atributo é a individualidade, vivendo livre e correndo velozmente pelas florestas, sempre acompanhada por seus cães.

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As lendas gregas exaltavam muito o princípio casto e virginal das deusas, isto porque a castidade tem uma significação ampla além da voluntária abstinência sexual e abrange outras virtudes humanas, que são o resultado da soma de valores superiores, que requer um compromisso pleno consigo mesmo, permanecendo na sua integridade.
O conceito de fidelidade é muito mais abrangente do que o concebe a compreensão popular. Fidelidade é um atributo elevado, primeiramente da pessoa para consigo mesma, interiormente, de tal modo que quando é fiel ao outro, certamente é primeiramente fiel em seu íntimo. Assim, quem é fiel é casto; quem é casto é fiel.

O primeiro efeito do amor é a união indissolúvel de corações, e por extensão, a fidelidade é inviolável na pureza de
intenções e honestidade no relacionamento. A fidelidade representa o amor e respeito ao próximo, é ser sincero aos seus compromissos e escolhas, é abnegação aos desejos de cobiça, é ter compromisso e não apenas envolvimento. A castidade conjugal significa fidelidade ao cônjuge e aos compromissos assumidos no matrimônio. A castidade está presente no pudor que protege a intimidade e consiste no temor de realizar um ato indecoroso ou indigno.

O pudor é o sentinela de defesa da castidade. É a humildade e sobriedade que torna a pessoa incapaz de
exaltar-se no comportamento desordenado. É a diligência e cumprimento das próprias obrigações prevenindo os males da ociosidade. Inclui ainda a caridade e piedade, que não se ocupa de afetos desordenados. Casta é a mente que se preserva de pensamentos brutais e violentos, e se mantém, primeiramente, na pureza da alma.
Artemis é o arquétipo da mulher que tende a ajudar e defender outras mulheres e usa um escudo emocional nos envolvimentos afetivos. Sujeita a ataques e rompantes emocionais, em muitas ocasiões ela costuma reagir cruelmente quando está pressionada em assuntos do amor. Em geral, é uma grande amiga e representa um tipo de feminismo que deseja equiparar-se aos homens, de igual para igual. Sua sexualidade tende a se manifestar de forma masculina e muitas vezes adia a maternidade em função de outras metas ou opta por uma gravidez independente.
Enfrenta os desafios, é objetiva e busca superar a si mesma. De natureza indócil diante das injustiças, o seu aprendizado consiste em aprender que o fato de ser justiceira não impede que ela desenvolva um temperamento doce e desarmado. A diferença entre homens e mulheres é um fato e a busca da igualdade radical não faz sentido, pois é justamente no equilíbrio entre as diferenças, que a coexistência entre homens e mulheres se torna mais harmoniosa.

sábado, 5 de março de 2011

Atalanta e Hipomenes





Logo depois de seu nascimento Atalanta foi abandonada numa floresta por seu pai que desejava descendentes masculinos. Nas montanhas uma ursa amamentou a criança. Certa vez, quando uns caçadores passavam por aquela região, encontraram a criança, levaram-na e a criaram. Atalanta cresceu nas frescas montanhas recobertas de florestas, tornando-se forte e ágil como uma gazela e seu maior prazer era caçar com sua lança.


Em Calidon os primeiros frutos da colheita deviam ser sacrificados aos deuses. Infelizmente o rei Eneus esqueceu-se
do sacrifício e, por isso, Artemis furiosa com a negligência enviou sobre o seu reino um enorme e furioso javali, que destruia plantações e colheitas. O rei mandou chamar os mais nobres homens para lutar contra o terror e o vencedor receberia a pele do javali. No entanto, como nenhum homem conseguisse vencê-lo, Atalanta se ofereceu e conseguiu lutar e vencer o terrível javali.

Assim Atalanta conquistou a reputação de grande caçadora. Seu pai a procurou
levando-a para seu reino. Ela tinha o rosto muito masculino para uma mulher e. ao mesmo tempo, muito feminino para um homem. Sobre seu destino foi-lhe revelado: “Não te cases, Atalanta, porque o casamento será tua ruína”.

Essa predição a atemorizou de
tal forma que ela decidiu fugir da companhia dos homens, dedicando-se inteiramente aos exercícios corporais e à caça. Quando algum pretendente à sua mão tornava-se mais insistente, ela geralmente se livrava da perseguição impondo-lhe uma regra: “Eu serei o prêmio daquele que conseguir vencer-me numa corrida, mas a morte será o castigo de quem tentar e perder”.

Apesar do risco que acompanhava essa proposta, muitos candidatos já haviam tentado conquistá-la sem sucesso e em todas as oportunidades o jovem Hipomenes tinha sido o juiz da disputa. A princípio ele se perguntava indiferente: “Será possível que alguém seja tão louco a ponto de arriscar sua vida desse modo, só para conquistar uma esposa?”. Até que um dia ao vê-la tirar as vestes para disputar uma das provas, ele entendeu a razão pela qual os interessados continuavam a chegar, e murmurou consigo mesmo: “Perdoai-me jovens, eu não sabia qual era o prêmio que irias disputar”.

Hipomenes passou a desejar que todos os candidatos fossem derrotados. Esse sentimento crescia e se tornava mais forte
a cada vez que o rapaz via a virgem correr. Para ele, nesses momentos ela ficava ainda mais bela, mais desejável, com os cabelos soltos agitando-se sobre os ombros e o rubor do esforço físico lhe coloria a face. Ao mesmo tempo, a brisa parecia dar-lhe asas aos pés e assim os concorrentes ficavam para trás, distanciados e eram mortos impiedosamente ao final da disputa.

Certo dia Hipomenes não mais se conteve e, fixando seus olhos nos olhos de Atalanta, ele disse: “Por que te vanglorias de vencer esses lerdos? Eu me ofereço para a disputa”. Sem saber o que responder, Atalanta apenas pensou: “Que deus pode tentar um homem tão jovem e tão belo a se arriscar dessa maneira? Tenho pena dele, não por causa de sua beleza mas sim porque é tão moço. Bom seria que desistisse ou caso seja tão louco para insistir, que me vencesse”.

Diante da
sua hesitação de Atalanta, os espectadores reagiram. Enquanto isso, Hipomenes implorava ajuda de Afrodite, deusa do amor: “Ajude-me, senhora, pois foste tu que me impeliste a amá-la”. Ouvindo a súplica, Afrodite que tinha nos jardins uma árvore de folhas e ramos amarelos com frutos de ouro, colheu três frutos e sem que ninguém notasse, os entregou a Hipomenes, já posicionado na linha de partida, ensinando-o como usá-los.

Dado o sinal de largada, Atalanta e Hipomenes partiram na corrida incentivados pela plateia. Logo
Hipomenes começou a respirar com dificuldade, sentindo a garganta seca, as pernas se tornando pesadas, o ímpeto diminuindo, apesar da meta ainda se encontrar distante. Seguindo as instruções de Afrodite, Hipomenes deixou cair uma das maçãs de ouro e Atalanta admirada parou para pegá-la, permitindo que Hipomenes ganhasse dianteira.

Mas Atalanta voltou a correr e logo alcançou o adversário. A
o percebê-la Hipomenes largou a segunda maçã. Novamente Atalanta parou para pegá-la mas reiniciou a corrida aproximando rapidamente do desafiante. Quando estava quase a ultrapassá-lo, próximo da linha de chegada, Hipomenes viu que só lhe restava apenas uma oportunidade e mais uma vez suplicou para Afrodite: " Oh deusa, faça frutificar tua dádiva" e jogou a última maçã de ouro.

Enquanto Atalanta se distraiu com a árvore de ouro que crescia, Hipomenes venceu a corrida. Atalanta ficou satisfeita com o presente de Afrodite e Hipomenes por ter conseguido vencer. Porém, felizes na comemoração se esqueceram de agradecer à deusa Afrodite. Com essa ingratidão não ficaram impunes os ofensores: a deusa Cibele que punia a ingratidão os fez perder a forma humana: Atalanta foi transformada em leoa e Hipomenes em um leão. Eles foram atrelados ao carro da deusa, onde ainda podem ser vistos em todas as suas representações, na escultura e na pintura. A profecia se cumpria: o seu casamento seria sua ruina.




***********************



Atalanta é uma imagem da fuga do feminino, inicialmente ainda não integrada. Ela se inscreve na linhagem de mulheres que não se interessam em se unir ao masculino, porque ela deseja alguém que seja igual a ela, veloz, ágil e forte. O mito de Atalanta é simbolizado nas mulheres auto-centradas e a sua lança simboliza isso. O tema central deste mito é a união dos opostos e posteriormente uma transformação.

Do grego Tálanta, que significa a sofredora, a mulher que suporta, Atalanta se dedicava à caça. Poderia se pensar que ela teria uma força muito grande, mas na verdade era aparente. Ela tinha um método preciso de deixar que seus pretendentes saissem na frente com vantagem na corrida, mas todos invariavelmente perdiam a corrida e eram abatidos. A Atalanta do mundo moderno é a executiva que, absorvida pelo trabalho, não tem tempo para se dedicar aos seus sentimentos e emoções.Da forma como ela fora criada, Atalanta andava armada e seu desejo era permanecer na solidão, imersa na sua natureza. Para fugir do casamento ou da união com o masculino, tinha seus truques e conseguia vencer seus pretendentes usando-os. Isso tem uma significação ampla, uma negação das diferenças entre o masculino e o feminino. O seu desejo em retardar o casamento está na falta de consciência acerca da própria sexualidade; é neste mundo das disputas que ela não se sente rejeitada.

No mito, o amor rompeu isso com Afrodite, que não admite rebeldes ao amor, ajudando Hipomenes. Os pomos de
ouro representam os truques da sedução. Com seus truques, Hipomenes venceu a corrida e ajudou Atalanta encontrar sua porção mulher: a união dos opostos e a transformação, do ser uno ao ser duplo, do feminino no masculino. Os conteúdos da alma se integram e nesta conquista o brilho de ouro que a fascina, faz com que Hipomenes sutilmente a alcance e vença a corrida.

A transformação em um casal de leões pode ser entendida como uma passagem da sexualidade infantil, para uma
sexualidade mais amadurecida. Atalanta abandona a imagem do feminino fugidio para ser mulher. Este processo psicológico do desenvolvimento dos lados contra sexuais internos é requisito para o desenvolvimento no caminho da auto descoberta. Muda para uma personalidade madura, consciente de suas responsabilidades e ciente de ter experienciado a mais profunda conexão da existência. 



quarta-feira, 2 de março de 2011

Nêmesis, a justiça divina



Nix, a noite acima da terra, unindo a Érebus criou Éter - a luz atmosférica e Hemera - a luz do dia. Desdobrando-se sozinha, Nix gerou divindades como as Hespérides, as Moiras, Éris, Lete e Nêmesis. Quase todos os descendentes de Nix foram abstrações personificadas como Nêmesis, que simboliza a indignação pela injustiça praticada e a punição divina diante do comportamento desmedido dos mortais. Os romanos a qualificavam como a inveja. Sua função essencial era restabelecer o equilíbrio quando a justiça deixa de ser praticada. No significado da palavra, em grego significa distribuir; assim Nêmesis é a justiça distributiva.

Quando Gaia entregou Temis aos cuidados das deusas do destino, Temis e Nêmesis
passaram a ser criadas juntas no Olimpo, tendo atributos em comum. Têmis tornou-se a personificação da ética e Nêmesis a personificação da vingança divina. Em Ramnunte localizava-se o templo de Nêmesis, onde havia uma estátua das duas deusas juntas. Quando os persas tentaram tomar a cidade de Atenas, Nêmesis interferiu encorajando o exército ateniense, pois os persas demonstram demasiada confiança na vitória, considerado sinal de desmesura - Hibrys.

Nêmesis representa a força encarregada de abater toda a desmesura - Hibrys, como o excesso de felicidade de um
mortal ou o orgulho dos reis em sua supremacia, etc. Essa é uma concepção fundamental do espírito helênico: tudo o que se eleva acima da sua condição, tanto no bem quanto no mal, expõe-se a represálias dos deuses. Tende, com efeito, a subverter a ordem do mundo, a pôr em perigo o equilibrio universal e, por isso, devia ser castigado para garantir que o universo se mantivesse como era.

A palavra Nêmesis originalmente significava "distribuição da sorte", nem boa nem má, simplesmente, na proporção
devida a cada um segundo seu merecimento. Poderia também ser o ressentimento quando alguém sofria por uma atitude alheia e Nemêsis não permitia que o ofensor passasse impune. Nas tragédias gregas, Nêmesis apareceu principalmente como o vingadora do crime e castigadora da arrogância, assemelhando-se às Erínias.

Alguns a chamavam de Adrastéia que significa "aquela de quem não há escapatória". Como deusa da devida proporção e
equilibrio, ela punia toda transgressão dos limites da moderação e restaurava a normal e boa ordem das coisas. E ao punir a ostentação desenfreada, ela se tornou uma divindade de castigo e vingança. Ostentando uma espada que representa a justiça, traz nas mãos uma ampulheta que adverte que a justiça pode demorar, mas é certeira. Por isso, muitas vezes é relacionada ao karma.

Nêmesis era também chamada "a inevitável". Atualmente, o termo Nêmesis é usado para descrever o pior inimigo de
uma pessoa, normalmente alguém ou algo que é exatamente o oposto de si mas que é, também, de algum modo muito semelhante a si. É algo como o seu arquiinimigo, algo que o anula, mas nutre-lhe um grande respeito e admiração.

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Jung, médico suíço, foi um dos discípulos prediletos de Freud até se tornar um herege da psicanálise. Jung criou a psicologia arquetípica ou os modelos, padrões recorrentes e fixos que variam na forma, mas se repetem no conteúdo subjacente, mudam na superfície, mas não nos alicerces, mantendo a mesma essência com variadas máscaras. Dois dos muitos arquétipos são a híbris e a nêmesis.

A híbris é a arrogância do poder; a nêmesis é a punição dessa
arrogância. Elas estão presentes quando a natureza pune a pretensão dos que se acham poderosos o suficiente para manipular o mundo e a vida a seu bel prazer. Às vezes é possível ser híbris e nêmesis ao mesmo tempo, provocando reações mistas.

É compreensível que tenhamos orgulho das nossas conquistas resultantes dos nossos esforços, representada pela
hybris. Porém, quando isso se torna motivo de soberba, com certeza veremos as nêmesis chegando até nós através dos que se afastam ou nos condenam diante da nossa reprovável arrogância e prepotência. Isso se aplica às pessoas, às nações, times de futebol e qualquer outro que tenha excesso de confiança, esquecendo que o equilibrio está na moderação. A arte imita a vida, e o filme Titanic expressou isso muito bem; um iceberg foi a nêmesis que causou o naufrágio do navio considerado inaufragável...
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Quem sou

Nascida em Belo Horizonte, apaixonada pela vida urbana, sou fascinada pelo meu tempo e pelo passado histórico, dois contrastes que exploro para entender o futuro. Tranquila com a vida e insatisfeita com as convenções, procuro conhecer gente e culturas, para trazer de uma viagem, além de fotos e recordações, o que aprendo durante a caminhada. E o que mais engradece um caminhante é saber que ao compartilhar seu conhecimento, possa tornar o mundo melhor.

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